Situado na rota comercial para as Índias, o sul da África foi colonizado por
holandeses, aos quais vieram se juntar flamengos, alemães e franceses. Foram
eles que, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, haviam montado um posto
de abastecimento para suas fragatas, em meados do século xvii, e deram origem
aos africâneres, chamados pejorativamente de bôeres. Desde o seu estabelecimento
na região, travaram inúmeras disputas com os nativos por terra e gado. Ainda que
os africâneres tivessem se apropriado de boa parte do território, as tribos
nativas permaneceram independentes. Os escravos vinham da Indonésia, colônia
holandesa.
Em 1860, no quadro das disputas imperialistas europeias, os
ingleses desembarcaram com artilharia pesada, canhões e soldados para dominar o
sul da África. Entraram em conflito com os africâneres e os nativos. Os xhosas
resistiram por mais de dez anos e os zulus, em uma batalha sangrenta, chegaram a
vencer os britânicos. Vinte anos depois, foram definitivamente derrotados. Os
ingleses trouxeram escravos da Índia.
Nessa época, um jovem brincava no
jardim de sua casa quando achou uma pedra enorme e brilhante. Era um diamante de
quase 22 quilates. No ano seguinte, um pastor encontrou um de 87 quilates. O
feito provocou uma migração em massa. Em menos de dois anos, mais de 50 mil
pessoas chegaram à região.
Foi quando três ingleses - Cecil Rhodes,
Charles Rudd e Barney Barnato - se embrenharam na exploração de minas de pedras
preciosas. Começaram alugando bombas de água para os escavadores, e pouco a
pouco foram adquirindo pequenas cotas nos lucros. Assim nasceu a De Beers, hoje
sob o comando do grupo Oppenheimer, que há quase 130 anos domina o mercado
mundial de diamantes.
Com o território dominado, africâneres e britânicos
se entenderam e proclamaram a União Sul-Africana. Foram promulgadas as primeiras
leis de segregação racial, como o passaporte que restringia o ir e vir dos
negros e os proibia de comprar terras fora das reservas tribais. Mas foi só no
final da década de 1940, quando o Partido Nacional ganhou as eleições, que se
montou o regime do apartheid, da separação racial. O casamento
inter-racial virou crime. As escolas e bairros foram divididos. Os negros
perderam o direito de votar, ter propriedades e de frequentar praias, piscinas,
cinemas e hospitais destinados aos brancos. O Partido Nacional criou também os
bantustões - dez nações tribais pretensamente autônomas, instaladas em áreas
descontínuas correspondentes a apenas 13% do território nacional.
No
livro The Afrikaners: Biography of a People [Os Africâneres: Biografia
de um Povo], o historiador Hermann Giliomee coloca a seguinte questão: como um
povo educado no Iluminismo e na piedade cristã edificou uma nação com base na
exploração racial? A resposta, diz ele, seria a vontade dos africâneres em
preservar a identidade. Nas colônias que se tornaram independentes a partir do
século xix, os europeus derrotados desenvolveram três estratégias: voltaram às
metrópoles, se acomodaram ao novo poder ou então continuaram mandando, por meio
dos governantes em exercício. Na África do Sul, os africâneres foram minoria
populacional e classe dominante por quase 350 anos. Não se consideravam um poder
exterior porque não tinham para onde retornar. A integração racial, no seu modo
de ver, significava suicídio.
A África do Sul lembra o Brasil.
Joanesburgo é uma metrópole parecida com São Paulo. Pretória é um centro
governamental como Brasília. E a Cidade do Cabo, com suas montanhas à beira-mar
evoca imediatamente o Rio. Aqui, 50% da população é composta por negros e
pardos, que engrossam a base da pirâmide social, em oposição aos brancos que
dominam o topo. A semelhança entre os povos também é grande.
Como a
maioria dos brasileiros, os sul-africanos são expansivos, alegres e falam
alto.
Há detalhes diferentes. Nas áreas ricas das grandes cidades
sul-africanas as ruas são mais limpas que as do Leblon ou dos Jardins, é raro
ver pichação em muros, os prédios são bem conservados, a frota de transporte
público parece nova. E há disparidades significativas: não há no Brasil um
restaurante como o 8@The Towers, no bairro de Sandton. Ele é um ponto de
encontro dos diamantes negros de Joanesburgo.
Da varanda do restaurante,
via-se a frota dos clientes: um Hummer, três bmw e dois Jaguar. Na parede
principal, lia-se "Veuve Clicquot" em letras garrafais. Os garçons, assim como
90% dos frequentadores, eram negros e tinham a cabeça raspada. Os fregueses
estavam de terno escuro com gravata rosa ou vinho. As mulheres usavam saltos
altíssimos, perucas de cabelos lisos e vestidos curtos, colados em corpos
torneados a alface e malhação.
Sentados em um sofá baixo, um casal pediu
a segunda garrafa de Dom Pérignon. Aos 25 anos, Lungu (que não quis dizer o
sobrenome) disse ser montador de filmes para a televisão. A moça, praticamente
deitada em seu colo, também não quis se identificar, mas informou ser uma
"modelo muito famosa". Novelas e seriados das emissoras de tevê retratam os
novos ricos como hedonistas profissionais. Eles sempre aparecem bebendo uísque
doze anos ou conhaque, usando grifes de luxo, jogando golfe ou dirigindo carrões
importados. Quase nenhum trabalha.
Lungu contou que seu tio havia sido
guarda-costas de um "importante membro do cna" e que a família havia entrado no
ramo de exportação depois do fim do apartheid. Durante o regime viviam
em Soweto, a cidade negra no subúrbio de Joanesburgo, onde seu pai trabalhava
como motorista e a mãe era dona de casa.
"Essa insistência de ficar
falando em problemas de raça na África do Sul é coisa dos brancos", disse Lungu
enquanto a modelo se servia de mais um pouco de champanhe. "Isso é um problema
que ficou para trás. Eu não tenho problema algum com raça. Os brancos é que
têm." Em cima da mesa, um jornal estava aberto na página de uma notícia
impensável até pouco tempo atrás: a foto de uma trombada entre uma Ferrari e um
Lamborghini, cujos donos, e não os motoristas, eram negros.
Havia apenas
duas mesas ocupadas no 8@The Towers por brancos e nenhuma com brancos e negros.
Na maioria dos restaurantes ainda é assim. A não ser que o encontro seja uma
reunião de trabalho, negros e brancos frequentam o mesmo espaço, mas não se
misturam. Casais multirraciais são raríssimos. Em vinte dias, vi dois. Em um
deles, a moça era australiana.
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