Faço parte da
geração 68, como ficou conhecida a dos estudantes libertários que viraram o
Brasil e o mundo de cabeça para o ar naquele ano do século passado,
contestando todas as hierarquias e estruturas de poder, sem ter
ideia de onde pretendiam chegar. Sabiam o que não queriam mais, mas não se
entendiam sobre o que exatamente sonhavam colocar no lugar.
Pintava de tudo
naqueles movimentos estudantis, das barricadas de Paris às grandes passeatas no
Rio: comunistas, trotskistas, anarquistas, hippies do paz e amor,
guerrilheiros urbanos, porra-loucas e insatisfeitos em geral.
Tinha acabado
de entrar na faculdade, na primeira turma da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, criada um ano antes. Voltei lá
esta semana para participar de um debate junto com Heródoto Barbeiro, meu
colega no Jornal da Record News, que comemorou na
segunda-feira sua milésima edição no ar.
Para mim, foi um
verdadeiro choque cultural. Nada mais restava daquele agito permanente em que
os alunos ficavam mais fora do que dentro das salas de aula, pintando cartazes
e faixas, fazendo discursos inflamados contra o reitor, a polícia, os
americanos, a ditadura militar, o diabo a quatro.
Confesso que não
tinha na época a menor consciência política e gostava mesmo era da farra, das
festas, das paqueras, das intermináveis conversas no Rei das Batidas, um
bar que existe até hoje na entrada da Cidade Universitária.
Já trabalhava na
época como estagiário do Estadão, o principal jornal brasileiro naquele tempo,
onde tinha entrado no mesmo mês em que passei no vestibular. Como viajava muito
para fazer reportagens, comecei a frequentar cada vez menos a faculdade,
que não consegui terminar até hoje.
Agora, ao entrar
na sala, onde os alunos do professor Santoro já nos aguardavam, tive uma
sensação estranha. Todos em silêncio, comportadamente sentados, pareciam
esperar o início de uma missa. Do lado de fora, nenhum sinal ou som fazia
lembrar a escola onde estudei quase meio século atrás. A ECA-USP velha de
guerra, um dos principais focos dos confrontos dos anos 60, mais parecia a sede
de uma repartição pública.
Imaginava
encontrar um clima bem diferente após as manifestações do Fla-Flu político dos
últimos dias. Nos debates de que participei quando era aluno, os palestrantes
passavam o maior sufoco. Eram contestados a todo momento. Desta vez,
porém, depois de uma hora de conversa, me dei conta de que só Heródoto e eu
falamos, sem ninguém nos interromper para discordar de nada. Até comentei isso
para dar uma provocada na turma, que ficou só olhando para a minha
cara como se eu fosse um extraterrestre.
Com o entusiasmo
de sempre, Heródoto falava das maravilhas das novas tecnologias e eu da minha
paixão pela reportagem, relembramos fatos históricos, arriscamos previsões sobre
o futuro da profissão. Quando chegou a vez das perguntas, ninguém tocou nas
profundas crises que o país está vivendo em todas as áreas. Na verdade, nem
eram perguntas, mas apenas comentários sobre teorias da comunicação e mercado
de trabalho, algo bem limitado ao que costumam discutir em sala de aula. É
como se não estivessem preocupados com o que acontece fora das fronteiras da
universidade.
À noite, na TV,
quando comentamos nosso encontro na ECA, me dei conta de uma diferença
fundamental que aconteceu neste meio tempo: somos de uma geração que dedicou
boa parte de suas vidas à luta coletiva, queríamos mudar o país e o mundo, e
fomos vitoriosos ao ajudar a derrotar a ditadura e a dar início a um processo
de distribuição de renda, que tornou nosso país mais livre e menos injusto.
Hoje, noto um
comportamento mais egoísta, em que os jovens estão preocupados com a
carreira e a própria sobrevivência, na base do cada um por si e Deus
por todos.
Em algum ponto,
nós falhamos. Não conseguimos repassar para as novas gerações valores como
a solidariedade, a ousadia, o inconformismo, a capacidade de sonhar e
mudar o estabelecido para a construção de uma sociedade mais generosa.
Pior do que isso:
não fomos capazes de criar novas lideranças, tanto que o país continua dividido
entre FHC e Lula, trinta anos após a redemocratização do país, nem de
manter vivo o espírito que mobilizou os movimentos sociais em torno
das lutas pela anistia, pela Constituinte, pelas liberdades públicas. Ou alguém
sabe quem são esses líderes que apareceram nas manifestações de março? De onde
surgiram, quais são suas histórias, que representatividade têm, quais são seus
projetos de país?
Somos ao mesmo
tempo vitoriosos e derrotados. Ganhamos nas lutas do passado, mas fomos
derrotados na construção do futuro.
Por isso, chegamos
ao final de um ciclo político, com a falência do chamado presidencialismo de
coalizão da Nova República, esta zorra federal instalada em Brasília e tão
distante do Brasil real, colocando em xeque o futuro da própria democracia
representativa pela qual tanto lutamos.
Texto: Ricardo
Kotscho
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