domingo, 15 de agosto de 2010

MARCOS SÁ CORRÊA

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Se contasse este mês os passos que lhe faltam para se aposentar, Antônio Luiz de Lima somaria, até o dia 30, quase 100 quilômetros a seu currículo de marchas forçadas na Divisão de Obras Civis da hidrelétrica de Itaipu. Ele frequentemente percorre 8 quilômetros por expediente. Em diferentes circuitos. Mas sempre no mesmo lugar. Trabalha dentro da barragem, caminhando por corredores estreitos e amplos precipícios, ora se espremendo em cubículos, ora varando abismos de alvenaria por diáfanas passarelas metálicas.

Antônio é leiturista de Itaipu. Ou seja, confere milhares de registros embutidos em pontos-chaves da muralha. Como um endoscópio falante, de capacete na cabeça e planilha nas mãos, no mínimo três vezes por semana ele examina as entranhas da represa, tendo de um lado o reservatório com 29 bilhões de metros cúbicos de água e vinte tubos com 10,5 metros de diâmetro que envolvem o arcabouço de concreto, e caem do outro lado na boca das turbinas, depois de ganhar velocidade num escorrega de 142,2 metros.

Transitar por ali é como explorar uma caverna. A barragem tem 7 744 metros de comprimento, emendando paredes de argila, pedregulho e concreto. No trecho principal, foram cravados durante a construção 2 383 sensores e 5 239 drenos, para medir as deformações da estrutura e escoar as infiltrações inevitáveis. Todos são verificados regularmente.

A cada ano, dezesseis profissionais, entre técnicos e engenheiros, fazem 185 mil aferições em pêndulos, piezômetros, alongâmetros e outros artefatos de nome sonoro, aparência rústica e tecnologia imemorial. Alguns lembram calibradores de pneus em postos de gasolina. Outros, uma ponta de cano saindo do muro. Todos só funcionam nas mãos de especialistas. Menos de 10% dos sensores instalados em Itaipu são automáticos.

Logo, o sistema de segurança da represa depende de funcionários como Antônio. De preferência, gente tarimbada. Ele está fazendo 33 anos de casa. Sai do emprego levando uma suspeita de surdez no ouvido esquerdo, que atribui, primeiro, à íntima convivência com as torres que moeram os 12,7 milhões de toneladas de concreto das obras civis na barragem e, ultimamente, ao ronco das vinte turbinas de 6 438 toneladas que giram, no mínimo, a 90 rotações por minuto na casa de máquinas.

Com rigor de engenheiro, ele avisa que o problema de audição "a fonoaudióloga não constatou". Certo mesmo, atestado pelos médicos com doses diárias de Condroflex e Arpadol, é o desgaste prematuro das cartilagens de seus joelhos, "de tanto subir e descer rampa ou escada". São "383 degraus só para ir da cota 144 à 82". E isso, naquele universo hidráulico, é altura para um prédio de vinte andares.

Embora haja elevadores nos blocos centrais da represa, "cobrir a pé 60 ou 80 metros de desnível é coisa que acontece a toda hora". E ainda bem, porque a pior lembrança de suas três décadas se concentra nos 22 minutos a bordo de um elevador em pane. Ele estava, na ocasião, sozinho e sem lanterna, dois pecados capitais no breviário de segurança dos leituristas de Itaipu. A bordo, a luz piscou. A cabine do E-12 parou com um tranco. E, ao voltar a eletricidade, ele se deu conta de que estava preso numa caixa de aço, "provavelmente na cota 78".

Quer dizer, 142 metros sob a borda da represa. Dentro de um bloco oco de concreto desabitado com 196 metros de altura, que em si já é um lugar "todo fechado, onde você olha para o alto e não vê uma nesga de céu". A saída ficava a uns 66 metros poço acima. Antônio pegou o telefone interno e ligou imediatamente para o 9999, o número de emergência, que toca no posto dos bombeiros, ao pé da barragem. E, depois de pedir socorro, não tirou mais os olhos do relógio.

Todo seu treinamento para emergências deu para quatro minutos de espera. "Aí, comecei a me sentir mal", disse. Chamou novamente o 9999, agora em pânico. "Por sorte, o sujeito que me atendeu tinha experiência nessas coisas e não parou mais de conversar comigo." Pendurado ao telefone, sentiu quando a turma do resgate começou a enganchar sacos de areia nos cabos do contrapeso. Aos poucos, o E-12 foi subindo. Ao abrir a porta, viu o chão desalinhado do piso. E saiu do elevador como quem salta de um parapeito.

"Aqueles 22 minutos foram uma eternidade", ele resume, enchendo a xícara de Cachamai, o chá de ervas argentino que tem sempre à mão, num canto do Laboratório de Tecnologia do Concreto, aninhado num antigo barracão de madeira do canteiro de obras. Antônio nem se arrisca a dizer quando, exatamente, a encrenca do elevador aconteceu.

"Foi há uns oito ou dez anos", ele desconversa. É a única imprecisão de datas numa fala em que tudo tem dia, mês e hora, recitados de cor. Ele lembra que estreou na empresa "em 27 de novembro de 1977" e, naquele mesmo dia, "às 19h15", viu cair o concreto da partida "001/77", destinado ao bloco "H-5C". E que estava lá 27 anos depois, "em 30 de novembro de 2004, às três da tarde", ao sair o último concreto, para a "unidade 18-A".

Do susto no E-12 ficou só uma certeza: "Sofro de claustrofobia." Não suporta nem passar pelo "tubo de res-
sonância magnética". Mas isso ele diz no escritório. Dez minutos depois, ao entrar na barragem, parece curado do mal que diz lhe afligir. Aos 54 anos, continua em plena forma, a ponto de usar camisas justas de malha enfiadas no cinto, em vez dos blusões folgados do uniforme que tendem a enganchar nos obstáculos do percurso. Caminha no labirinto da barragem como se respirasse ao ar livre. Incorpora o "Antônio Pra Frente", o seu apelido dado pelos colegas ao melhor cicerone entre os leituristas.

Algum parentesco com o "Pra Frente, Brasil" da propaganda oficial, em voga quando os governos militares fizeram a hidrelétrica? Ele encara a pergunta como se a ouvisse pela primeira vez.

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