sábado, 20 de abril de 2013

DA CRISE Á IRRESPONSABILIDADE

Após farra na construção, projetos públicos naufragam na Espanha

UE investiga como gastança nas obras de uma Hollywood na Riviera Espanhola, de porto para superiates e do circuito para corridas da Fórmula 1 descontrolaram as contas do país

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Em tempos melhores, a Ciudad de la Luz (cidade da luz) foi projetada como um estúdio para megafilmes "onde os contos de fadas viram realidade". Suas avançadas máquinas de onda podiam criar um desastre ao estilo de um tsunami num tanque de água gigante de frente para o Mediterrâneo, como uma Hollywood na Riviera Espanhola.
Contudo, hoje em dia os canhões de água da Ciudad de la Luz estão secos e os 21 hectares de espaço do estúdio estão praticamente desertos. O complexo financiado com dinheiro público está à venda e luta para atrair produtoras de cinema. Autoridades da União Europeia deram um ultimato ao governo regional de Valência para explicar como pretendia recuperar os US$ 325 milhões de dinheiro público gastos impropriamente em ambições cinematográficas de um magnata.
"Na verdade, não existe dinheiro para devolver", disse José Ciscar Bolufer, vice-presidente do governo regional valenciano.
A criação do estúdio, em 2005, fez parte de uma farra construtiva vista por todas as 17 regiões autônomas da Espanha. Agora, conforme a crise nacional se aprofunda, a mistura de interesses – banqueiros, magnatas da construção e autoridades dos governos regionais – responsáveis por excessos como a Ciudad de la Luz está sob novo escrutínio, aqui e em outros lugares.
Estúdios da Ciudad de la Luz, em Alicante. Foto: Marta Ramoneda/International Herald Tribune Reservatório para filmagens aquáticas na Ciudad de la Luz, em Alicante. Foto: Marta Ramoneda/International Herald Tribune Cenário de uma delegacia de polícia nos estúdios da Ciudad de la Luz, em Alicante. Foto: Marta Ramoneda/International Herald TribuneEstúdio da Ciudad de la Luz, em Alicante. Foto: Marta Ramoneda/International Herald Tribune Depósito dos estúdios da Ciudad de la Luz, em Alicante, guarda estátuas usadas em filmes. Foto: Marta Ramoneda/International Herald Tribune
Reservatório para filmagens aquáticas na Ciudad de la Luz, em Alicante. Foto: Marta Ramoneda/International Herald Tribune
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Após o socorro financeiro aos bancos espanhóis, em junho, o governo central de Madri está enfrentando uma pressão crescente de investidores para equilibrar as contas do país reduzindo os poderes das regiões sobre os gastos, principalmente com saúde e educação.

O governo conservador do primeiro-ministro, Mariano Rajoy, também culpou as regiões por boa parte dos recentes problemas fiscais e, em resultado, determinou metas orçamentárias severas em 2012, aprovando leis que estabelecem multas para as regiões que não cumprirem tais objetivos.
No começo do ano, o governo de Rajoy ameaçou assumir as finanças das regiões teimosas. Tal medida, no entanto, provavelmente desencadearia um incêndio político num país onde as regiões lutaram com unhas e dentes para estimular sua autonomia, incluindo o direito de usar idiomas próprios. Elas recuperaram tais poderes no final da década de 1970, quando a nascente democracia espanhola redigiu uma nova constituição após décadas de governo autoritário sob o general Francisco Franco.
Gradualmente, as regiões foram ficando encarregadas de mais despesas públicas, terminando por responder por quase metade delas – o dobro de três décadas atrás. A Ciudad de la Luz se tornou um exemplo famoso do frenesi de obras faraônicas de Valência, que deixou uma herança de US$ 25,5 bilhões em dívida regional e projetos de infraestrutura falidos, sem falar na reação adversa agora se formando contra eles.
Entre outros investimentos de Valência temos um porto para superiates, um teatro lírico similar à ópera de Sydney, Austrália, um museu científico futurista, o maior aquário da Europa e uma ponte em formato de vela, sem mencionar um aeroporto onde nunca houve uma única chegada ou decolagem sequer. A região também atraiu eventos extravagantes como a America's Cup, a mais famosa competição de iatismo, e o GP de Fórmula 1.
Getty Images
Construção do circuito de rua de Valência para a Fórmula 1 também é alvo de críticas das autoridades
Os investigadores da Comissão Europeia criticaram principalmente o pomposo estúdio cinematográfico, após análise feita em função de reclamações de estúdios particulares, os quais acusaram Valência de distorcer a concorrência de mercado com seu pesado financiamento público. Joaquín Almunia, vice-presidente da comissão para políticas competitivas, concluiu não haver necessidade de gastar dinheiro público no estúdio e que nenhuma companhia privada teria investido num projeto desses porque Alicante fica longe demais dos centros da mídia de Madri e Barcelona.
Embora, por ora, todas as regiões tenham evitado a intervenção federal, Valência ficou próxima de um resgate no final do ano passado quando foi forçada a buscar ajuda em Madri para não dar calote num empréstimo. Seus títulos públicos já são considerados moeda podre e o governo e importantes instituições locais estão abalados com as alegações de corrupção e fundos desperdiçados.
"Existem os três lados de um triângulo nesta história", afirmou Luis Garicano, economista da London School of Economics, que estudou a implosão das poupanças espanholas, as "cajas", que desempenharam um papel crítico nas farras de gastos regionais. "Os governos e 'cajas' regionais e os desenvolvedores tinham um sistema de troca de favores."
Aparentemente, ninguém poderia imaginar a dura realidade quando, em 2006, o então presidente regional valenciano, Francisco Camps, posou para as câmeras com o ator francês Gerard Depardieu. Os dois se deram um quebra-costelas, com Depardieu vestido com o figurino barrigudo de "Asterix nos Jogos Olímpicos", o tipo de filme de sucesso de sucesso pretendido pelo estúdio.
Foi Camps, membro do Partido Popular, há tempos governando Valência, que renunciou ano passado e depois foi inocentado das acusações de suborno, quem escolheu a dedo o dono de uma concessionária – e membro do PP – como presidente da CAM, a poupança local. O banco ajudou a financiar a construção do estúdio cinematográfico e outros projetos do governo, como o Terra Mitica, parque temático em Benidorm, voltado às culturas antigas. A poupança também terminou naufragando em meio às falências.
Por fim, a CAM faliu ano passado, merecendo o desprezo do diretor do Banco da Espanha o qual a qualificou como "a pior entre as piores" poupanças que ficaram com o grosso dos empréstimos imobiliários tóxicos da nação.
O estúdio – onde 60 produções foram filmadas – foi sugestão de Luis García Berlanga, conhecido diretor espanhol que propôs uma escola de cinema em Alicante. Contudo, o conceito cresceu e virou o projeto muito maior de estúdio, refletindo as ambições de políticos locais e do acesso fácil ao financiamento.
Os críticos reclamam que as autoridades regionais valencianas tinham o mau hábito de serem dominadas por celebridades como Berlanga, morto em 2010, ou Santiago Calatrava, famoso arquiteto que transformou um leito de rio seco em sua cidade natal de Valência na Cidade das Artes e Ciências, um complexo de prédios ao estilo da era espacial.
A mesma coisa aconteceu pela região de Valência, onde os projetos de Calatrava foram escolhidos sem concorrência ao mesmo tempo em que sua comissão passou de cerca de três% para 12% do custo de construção sem que o público soubesse, de acordo com Ignacio Blanco, membro do parlamento regional valenciano cujo partido, o esquerdista Esquerra Unida, obteve cópias dos contratos.
Agora, a irritação pública com as comissões de Calatrava é palpável numa região com uma taxa de desemprego da ordem de 27,3%, comparada à média nacional de 24,4%, levando o arquiteto, com domicílio em Zurique, a publicar um comunicado, em junho, afirmando que seus US$ 115 milhões em honorários são "modestos" e abaixo do padrão para projetos similares.
Em Alicante, a Ciudad de la Luz recebeu o apoio da indústria hoteleira, segundo a qual as produtoras foram responsáveis por 160 mil pernoites e mais de três mil contratos com empresas. Porém, os números caíram.
"É uma pena que o estúdio não tenha dado certo porque a infraestrutura era simplesmente perfeita", disse Yousaf Bokhari, diretor de produção de "Asterix nos Jogos Olímpicos". Segundo ele, a maioria das pessoas que trabalharam no filme não morava na região, resultando numa conta de hotel de US$ 2,5 milhões. "Provavelmente, os estúdios eram grandes demais para a demanda da época e, claramente, o correto teria sido crescer paulatinamente."
A empresa responsável pela administração da Ciudad de la Luz está processando Valência em US$ 5 milhões em função de pagamentos atrasados. Esse processo é um dos sete envolvendo o estúdio e podem custar ainda mais caro à região.
Apesar das pressões financeiras, Ciscar, o vice-presidente do governo regional valenciano, não se diz preocupado.
"Estamos otimistas porque temos potencial. Nosso setor turístico é bastante forte."
Novas cifras do ministério do turismo indicam que Valência está atraindo mais turistas estrangeiros, num aumento de 3,3%, em maio, depois de perdas de quase 7% no começo do ano.
Na verdade, os grandes projetos deixam os turistas boquiabertos.
"Agora entendi porque a Europa sofre uma crise financeira", afirmou Bryce Matuschka, da Nova Zelândia. "A ponte é uma obra de arte, o aquário é fantástico, mas em alguns dos prédios você precisa perguntar: 'Por que gastaram todo esse dinheiro?'."

OBS: FRASE DE ABRAHAM LINCOLN: NÃO HÁ PRESPERIDADE, BASEADA EM DINHEIRO EM DINHEIRO EMPRESTADO.
 

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